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Des-lo-car-mo-nos

Uma Ação Performativa entre Dramaturgia e Programa

Des-lo-car-mo-nos / Displace Us é uma ação artística concebida por três artistas - Manuela Ferreira, Matteo Bonfitto e Tiago Porteiro – que se utiliza da caminhada como dispositivo performativo. O dispositivo a que se chegou, em sintonia com os pressupostos associados à performatividade, pretende colocar os participantes não simplesmente na posição de expectadores ou observadores, mas entrosados no acontecer processual das experiências propostas. É assim que a noção de experiência, tal como a de alteridade, assumem nesta proposta
um papel central. Em Des-lo-car-mo-nos quisemos ir para além de um mero atravessamento sensorial dos corpos, tanto pelos espaços como pelos contextos urbanos e não-urbanos do centro histórico da cidade de Guimarães (Portugal). Foi assim que ao trajeto se associaram outras
dimensões de envolvimento e participação. No fim de contas chegámos a um percurso imersivo que convidava a um atravessar de realidades diferenciadas (espaços internos privados vs espaços
públicos) e que promovia práticas concretas de alteridade. Nomeadamente, tais práticas se deram através dos encontros diretos que aconteciam ao longo do percurso entre os participantes e os
anfitriões (vinculados aos espaços e às realidades atravessadas). A instauração de experiências promovia-se, em parte, através dessas interações. Nove espaços/realidades eram pontos de paragem ao longo de um percurso que envolvia também caminhos que os conectavam: sala de confecção do Curso de Moda da Universidade do
Minho (Guimarães - Campus de Azurém); escultura localizada perto do restaurante universitário do mesmo campus (obra do artista José de Guimarães); uma das laterais do Castelo de Guimarães; Centro de Solidariedade Humana Prof. Emídio Guerreiro e Museu do Convento de
Santo António dos Capuchos (Claustros - Santa Casa da Misericórdia); restaurante Cor Tangerina; Igreja da Nossa Senhora do Carmo; Biblioteca Municipal Raúl Brandão; Salão Nobre da Câmara Municipal; casa de Manuela Ferreira e Tiago Porteiro; e por fim, entrada do Teatro
Jordão, espaço onde, atualmente, se encontram instalados os cursos de Artes Visuais e o de Teatro da Universidade do Minho.
A metodologia do processo de criação foi colaborativa, uma vez que os artistas selecionaram e desenharam as ações nos espaços/realidades em diálogo com os anfitriões vinculados. A relação entre performatividade (entendida como processualidade), experiência e alteridade permeou, no seu todo, não só o processo como também as interações dos participantes no desenrolar das ações. Logo no início da viagem, na sala de desenho de moda, os participantes eram convidados a escolher um dos “quimonos” e/ou batas disponíveis para usar durante toda a caminhada. Ao vestir essas “segundas peles” o próprio ‘eu’ era deslocado para o lugar de um 'outro’, ou seja, uma alteridade era criada, numa primeira instância, a partir de um diálogo que se estabelecia de si para si. Não se propunha que esta ação induzisse uma qualquer criação de personagem, mas sim perceber como a imagem-corpo de cada participante seria transportada
para novos modos de subjetivação. As condições para o deslocamento dos participantes se acentuavam também através da imagem-retorno que os transeuntes fortuitos projetavam junto do grupo caminhante, composto por cerca de trinta pessoas.
Dentre as inspirações que colaboraram para a concepção dessa ação artística, cabe ressaltar a filósofa Hanna Arendt e sua obra “A Condição Humana”. Tal obra de Arendt contribuiu, neste caso, para a construção da trajetória realizada em Des-lo-car-mo-nos / Displace Us, na medida em que as três atividades humanas elaboradas por ela – labor, trabalho e ação – funcionaram como norteadoras, seja das escolhas das realidades acessadas, seja das experiências vividas em tais realidades. A noção de labor permeou as dimensões íntimas, sensoriais e
perceptivas ativadas nas instalações da Santa Casa, no restaurante Cor Tangerina, na Igreja e no interior da casa utilizada. A de trabalho, que permeou a dimensão social, foi ativada na relação com a escultura, assim como, junto ao castelo e na biblioteca. E por fim a noção de ação, que permeou a dimensão mais explicitamente política (do ponto de vista institucional), materializou-se no encontro com o vereador responsável pela área de cultura da Câmara Municipal de
Guimarães, onde os participantes tiveram a oportunidade de o interpelar. Uma outra dimensão presente no nosso exercício de construção desta caminhada, foi a que envolveu a relação entre ‘dramaturgia’ e ‘programa performativo’. Tal relação se
concretizava através das dinâmicas relacionais criadas durante o percurso. Se, por um lado (a partir também das evocações feitas à obra de Arendt), pode-se reconhecer um percurso narrativo e de construção de sentidos, e portanto dramatúrgico, por outro, cada experiência proporcionada pela imersão nas nove realidades adentradas, envolveu processos de des-programação perceptiva
e cognitiva, que é um dos aspectos que mais carateriza a singularidade dos programas performativos. Cabe salientar ainda, que a instauração da dimensão dramatúrgica não está vinculada a uma lógica causal de contação linear de histórias, mas, juntamente com a evocação
das camadas elaboradas por Arendt sobre o humano, ela se instaurou a partir de situações paradoxais e constrastantes, ativadoras, por sua vez, de lógicas associativas (espaços interiores vs espaços exteriores; momentos de contemplação individual Vs momentos de interação;
silêncio Vs ruído; ativação sensorial Vs atividade mais reflexiva). Assim sendo, a dimensão dramatúrgica exerceu em Des-lo-car-mo-nos / Displace Us uma função de preparação para os programas performativos, programas esses geradores de imersões experienciais ocorridas em cada uma das realidades acessadas.
Mantendo viva a espiral que nunca se esgota entre experiência e elaboração, após realizarmos Des-lo-car-mo-nos / Displace Us, percebemos que os aspectos colocados acima já estavam presentes de forma latente nas perguntas feitas entre nós, que demarcaram o início desse processo criativo. Dentre elas: como, através de uma ação artística que se utiliza da caminhada performativa como dispositivo, instaurar experiências mobilizadoras a partir da verticalização de
práticas concretas de alteridade? Como viabilizar expansões subjetivas através do jogo entre construções de sentidos e narrativas e desconstruções sensoriais, perceptivas e cognitivas?
Pode-se dizer que todos os envolvidos nesta ação (criadores, participantes, anfitriões e transeuntes), foram deslocados, em diferentes níveis, por esta ação. Nós, Manuela, Matteo e
Tiago, também nos deslocamos ao adentrarmos e ampliarmos dinâmicas relacionais com as pessoas anfitriãs que abriram os diferentes mundos acessados nesse processo. Também nos
deslocamos ao perceber as ações artísticas como um agir no espaço público, como um agir no mundo. Em sua geografia afetiva, Guimarães hoje é outra, assim como nós. Enfim, muitas foram as pontes invisíveis construídas em Des-lo-car-mo-nos / Displace Us, pontes feitas de desconstruções e ampliações perceptivas associadas às práticas de alteridade. Ao criar elos entre mundos e realidades contrastantes, entre subjetivo e coletivo e entre dramaturgia e programa, o que nos moveu foi a busca pelo reconhecimento da complexidade do humano, reconhecimento esse tão ameaçado nos dias de hoje. Também nesse âmbito, as ações artísticas podem exercer um papel central e insubstituível.
Portanto, des-lo-que-mo-nos!


Des-lo-car-mo-nos
Guimarães, PT

Criação:
Manuela Ferreira, Matteo Bonfitto e Tiago Porteiro




 
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